Cultura e Educação: Fronteiras Reais ou Construções Sociais?
- Juliana Oliveira
- 16 de out.
- 4 min de leitura
Uma reflexão sobre a (in)separabilidade entre os processos culturais e os educativos na formação do indivíduo e da sociedade.
Por Juliana Oliveira

A ideia de que cultura e educação caminham juntas é amplamente aceita, mas nem sempre aprofundada em seus desdobramentos. Historicamente, muitos discursos institucionais e acadêmicos buscaram traçar limites entre o que seria do domínio da cultura e o que pertenceria ao campo da educação formal, como se fossem esferas autônomas com finalidades distintas. No entanto, ao observarmos os processos de formação do sujeito em contextos diversos, torna-se evidente que as práticas culturais não apenas atravessam o educativo, como o constituem.
A separação entre cultura e educação, muitas vezes tomada como natural, é na verdade resultado histórico de construções sociais que moldaram as instituições e os modos de pensar ocidentais. Durante a modernidade, especialmente a partir do Iluminismo, consolidou-se uma ideia de educação formal baseada na racionalidade, na sistematização do conhecimento e na distinção entre saberes legítimos e ilegítimos. Essa concepção valorizou o conhecimento científico-acadêmico em detrimento dos saberes populares, tradicionais e orais — frequentemente situados no campo da “cultura”, mas fora da “educação”.
Por muito tempo, a cultura foi reduzida a um conceito elitista, ligado à erudição, à alta arte e à formação das classes dominantes. Somente ao longo do século XX pensadores começaram a expandir essa noção, compreendendo a cultura como um campo amplo, heterogêneo e vivido no cotidiano. Raymond Williams, por exemplo, defendia a cultura enquanto “modo de vida”, não apenas um conjunto de obras ou práticas eruditas. Essa perspectiva amplia a cultura como espaço formativo, no qual sujeitos se constroem por meio das relações sociais, linguagens, crenças e práticas compartilhadas.
A educação é frequentemente associada à escola, aos currículos formais e à instrução sistematizada. No entanto, para compreender a formação humana de forma mais ampla, é preciso reconhecer os múltiplos espaços em que aprendemos. Nesse sentido, a cultura se apresenta como dimensão educativa fundamental. As práticas culturais refletem modos de ser e viver, ensinam, transmitem valores, moldam identidades e organizam formas de ver o mundo. Mesmo fora das instituições escolares, a cultura atua como processo formativo contínuo.
Desde a infância, sujeitos são inseridos em universos simbólicos que comunicam significados e expectativas sociais. Família, comunidade, meios de comunicação, festas populares, música, linguagem, religiões, gírias, corpos e gestos — todos são veículos de aprendizagem. Trata-se de uma educação informal, muitas vezes invisibilizada pelas estruturas oficiais, mas que exerce profundo impacto sobre a constituição subjetiva e coletiva.
Paulo Freire, ao defender a educação como prática da liberdade, já alertava que não existe neutralidade no ato de educar, pois todo processo educativo é também um ato cultural e político. Para ele, o conhecimento emerge do diálogo com a realidade concreta e o contexto sociocultural de quem aprende. Freire propõe uma pedagogia que valorize os saberes populares, rompendo com a lógica “bancária” da educação, que apenas deposita conteúdos, e reconhecendo os sujeitos como produtores de cultura e conhecimento.
De modo semelhante, bell hooks defende uma educação engajada com a vida e a experiência, compreendendo o espaço educativo como lugar de resistência cultural. Ela enfatiza que a aprendizagem ocorre também nas trocas afetivas, nas narrativas pessoais e nos enfrentamentos diários vividos por grupos historicamente marginalizados.
Essas abordagens deslocam o olhar da educação como processo técnico, centrado na transmissão de conteúdos, para uma compreensão mais ampla, em que os saberes culturais e a experiência vivida ganham centralidade. Afinal, formar-se é aprender a existir no mundo — e isso acontece em constante diálogo com os códigos culturais que nos cercam.
Portanto, reconhecer a cultura como processo educativo é essencial para ampliar o entendimento sobre onde e como se aprende. A formação do sujeito ocorre em múltiplos territórios, e práticas sociais, mesmo as cotidianas, carregam potencial pedagógico.
As relações entre cultura e educação são complexas, dinâmicas e historicamente construídas. Longe de constituírem esferas separadas, elas se entrelaçam de forma indissociável na formação dos sujeitos e das sociedades. Como vimos, a ideia de que existe uma fronteira clara entre o educativo e o cultural é, em grande medida, uma construção social sustentada por interesses ideológicos e estruturas de poder que buscam legitimar determinados saberes em detrimento de outros.
Ao historicizar essa separação, compreendemos que ela não é neutra. Reflete disputas por legitimidade, reconhecimento e visibilidade no campo do conhecimento. A valorização da educação formal em detrimento das práticas culturais cotidianas reforça hierarquias que excluem saberes populares, ancestrais e periféricos — comprometendo o potencial emancipador da educação.
Reconhecer a cultura como processo educativo é passo fundamental para ampliar nossa compreensão sobre onde e como aprendemos. Entender a escola como espaço de disputa cultural permite identificar tanto lógicas de reprodução de desigualdades quanto possibilidades de transformação social que emergem da valorização da diversidade e da escuta dos sujeitos.
Na contemporaneidade, marcada pela fluidez dos espaços de aprendizagem, pela presença das mídias digitais e pela convivência (nem sempre pacífica) de múltiplas manifestações culturais, torna-se urgente construir práticas pedagógicas que acolham essa complexidade. Isso implica superar visões reducionistas e tecnicistas da educação, reconhecendo que educar é sempre ato cultural, político e territorializado.
Mais do que decidir se cultura e educação são fronteiras reais ou construções sociais, essa reflexão nos convida a repensar os sentidos do educar. Em tempos de disputas de valores, narrativas e futuros possíveis, é nesse entrelaçamento entre cultura e educação que reside a potência para formar sujeitos críticos, criativos e comprometidos com a transformação de nossas realidades.
